setembro 2024
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POR: Marcelo Celestino

É preciso conhecer a política de saúde

Marcelo Celestino

No ano de 1986, entre os dias 17 a 21 de março, mais de quatro mil pessoas se reuniram no Ginásio Nilson Nelson em Brasília para participarem da 8.ª Conferência Nacional de Saúde. O objetivo era a discussão de um novo modelo de sistema de saúde para ser implantado pela futura constituição brasileira. Distribuídos em cento e trinta e cinco grupos, os participantes debateram três temas centrais: a saúde como dever do Estado e direito do cidadão; a reformulação do Sistema Nacional de Saúde; e o financiamento setorial. O relatório final concluiu pela necessidade de implantação de um sistema único de saúde, coordenado por um ministério específico e que tivesse ações integralizadas, regionalizadas, hierárquicas, com a participação popular na formulação da política de saúde, no seu planejamento, na gestão, na avaliação e fiscalização desse sistema.

A Assembleia Nacional Constituinte foi instalada no Congresso Nacional em Brasília no dia 1º de fevereiro de 1987, com a missão de elaborar uma nova e democrática Constituição para o Brasil.** No dia 22 de setembro de 1988, findaram os trabalhos, que tiveram sua promulgação formal no dia 5 de outubro daquele mesmo ano. O texto aprovado sufragou as conclusões dos trabalhos da 8.ª Conferência Nacional de Saúde, trazendo a previsão de que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (Art. 196). O Sistema Único de Saúde, que nasceu com a nova ordem constitucional e foi regulamentado pela Lei Orgânica da Saúde, Lei 8.080/90, garante o direito à saúde através de uma rede regionalizada e hierarquizada, obedecendo as diretrizes da “descentralização, mas com direção única em cada esfera de governo”; com a meta de assegurar o “atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais”; exigindo a efetiva “participação da comunidade” (art. 198).

A gestão do SUS, desde a sua concepção, tem a sua essência no debate democrático, através da negociação e pactuação nacional, estadual e local. Aos gestores federal e estadual coube o papel de apoios técnicos e financeiros. O protagonismo desse sistema passou a ser desempenhado pelo município, ao qual foi destinada a missão de execução das ações de atenção à saúde e de atendimentos dos usuários e, de forma obrigatória, a Atenção Básica à Saúde. Para o exercício dessa missão, o município tem que implantar a sua Política Municipal de Saúde, com a participação da sociedade através da Conferência de Saúde, com o envolvimento de trabalhadores, usuários e prestadores de serviços. É nesse ambiente democrático, que o município é minuciosamente analisado, buscando informações gerais das condições em que vive a população, os principais indicadores demográficos, epidemiológicos, de morbimortalidade, de estrutura e de acesso. O resultado desse trabalho é a formatação do Plano Municipal de Saúde (PMS), o principal instrumento que norteia todas as medidas e iniciativas para o cumprimento dos princípios do SUS, constituindo a base para o planejamento de todas as ações, que deverão ser executadas de forma contínua, articulada, integrada e solidária com o custeio e apoio técnico do Estado e da União.

A Política Municipal de Saúde é dinâmica e exige sua reavaliação periódica, ou seja, deve estar sempre sujeita a revisões, para adaptar-se às novas necessidades. Para a sanitarista Lenir Santos, “a cada quatro anos deve ser realizada conferências de saúde para avaliar a situação sanitária e propor as diretrizes para a formulação da política de saúde”, a qual necessita estar coerente com as ações expressas na Programação Anual de Saúde (PAS), fruto dos resultados avaliados no Relatório Anual de Gestão (RAS), que orientará a definição do eixo estratégico da saúde no Plano Plurianual (PPA), na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e na Lei Orçamentária Anual (LOA). O processo de planejamento da saúde, nos termos do artigo 15 do Decreto 7.508/11, deverá ser ascendente e integrado, do nível local até o federal, ouvidos os respectivos Conselhos de Saúde, compatibilizando-se as necessidades das políticas de saúde com a disponibilidade de recursos financeiros.

O Ministério da Saúde editou a Portaria 399, de dia 22 de fevereiro de 2006, implantando o Pacto pela Saúde 2006 – Consolidação do SUS, aprovando as Diretrizes Operacionais do Pacto pela Saúde, que havido sido aprovadas naquele ano pela Comissão Intergestores Tripartite e pelo Conselho Nacional de Saúde. Esse Pacto prevê três prioridades, sendo: a) o Pacto pela Vida, “constituído por um conjunto de compromissos sanitários, expressos em objetivos de processos e resultados e derivados da análise da situação de saúde do País e das prioridades definidas pelos governos federal, estaduais e municipais”; b) o Pacto em Defesa do SUS, que “envolve ações concretas e articuladas pelas três instâncias federativas no sentido de reforçar o SUS como política de Estado mais do que política de governos; e de defender, vigorosamente, os princípios basilares dessa política pública, inscritos na Constituição Federal”; c) e o Pacto de Gestão do SUS, que “estabelece as responsabilidades claras de cada ente federado de forma a diminuir as competências concorrentes e a tornar mais claro quem deve fazer o quê, contribuindo, assim, para o fortalecimento da gestão compartilhada e solidária do SUS”.

O Pacto pela Vida, além de assegurar ações para a defesa da vida, tem o principal objetivo de reforçar o compromisso de gestão do SUS, com o fortalecimento da regionalização, que é uma diretriz do Sistema Único de Saúde e um eixo estruturante do Pacto de Gestão e deve orientar a descentralização das ações e serviços de saúde e os processos de negociação e pactuação entre os gestores. Os principais instrumentos de planejamento da Regionalização são o Plano Diretor de Regionalização – PDR, o Plano Diretor de Investimento – PDI e a Programação Pactuada e Integrada da Atenção em Saúde – PPI.

Os Objetivos da Regionalização garantem acesso, resolutividade e qualidade às ações e serviços de saúde cuja complexidade e contingente populacional transcenda a escala local/municipal; garantir o direito à saúde, reduzir desigualdades sociais e territoriais e promover a equidade; garantir a integralidade na atenção a saúde; potencializar o processo de descentralização, fortalecendo estados e municípios para exercerem papel de gestores e para que as demandas dos diferentes interesses loco-regionais possam ser organizadas e expressadas na região; racionalizar os gastos e otimizar os recursos, possibilitando ganho em escala nas ações e serviços de saúde de abrangência regional.

O Pacto pela Vida estabelece as RESPONSABILIDADES GERAIS DA GESTÃO DO SUS dos entes federados, sendo que o município é responsável pela integralidade da atenção à saúde da sua população, exercendo essa responsabilidade de forma solidária com o Estado e a União. A adesão ao pacto se dá através da assinatura de um Termo de Compromisso de Gestão, onde são definidas as responsabilidades e atribuições do gestor na condução do processo permanente de aprimoramento e consolidação do Sistema Único de Saúde, nos termos da Portaria n.º 699/GM de 30 de março de 2006, que regulamenta as Diretrizes Operacionais dos Pactos Pela Vida e de Gestão. Esse documento traz a previsão das metas e objetivos do Pacto pela Vida, as prioridades para o ano em curso e os indicadores de monitoramento. A construção desses Termos de Compromisso de Gestão deve ser um processo de negociação e apoio entre os entes federados diretamente envolvidos, assim, no âmbito municipal, o termo deve ser construído em sintonia com o Plano Municipal de Saúde, em negociação com o Estado e Municípios da sua região de saúde.

A Portaria do Ministério da Saúde n.º 1097, de 22 de maio de 2006, define “que a Programação Pactuada e Integrada da Assistência em Saúde (PPI) seja um processo instituído no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) onde, em consonância com o processo de planejamento, são definidas e quantificadas as ações de saúde para a população residente em cada território, bem como efetuados os pactos intergestores para garantia de acesso da população aos serviços de saúde. A PPI tem por objetivo organizar a rede de serviços, dando transparência aos fluxos estabelecidos, e definir, a partir de critérios e parâmetros pactuados, os limites financeiros destinados à assistência da população própria e das referências recebidas de outros municípios.”

Um dos objetivos gerais do processo da PPI é possibilitar a transparência dos pactos intergestores e assegurar que estejam explicitados no “Termo Compromisso para Garantia de Acesso”, documento que deve conter as metas físicas e orçamentárias das ações a serem ofertadas nos municípios de referência, que assumem o compromisso de atender aos encaminhamentos acordados entre os gestores em pactuações intermunicipais, para atendimento da população residente em outros municípios, o qual deverá ser aprovado na respectiva Comissão Intergestores Bipartite (CIB).

A PPI traz a quantificação das ações prevista no Plano de Saúde, definidas para a população local e a respectiva alocação dos recursos financeiros e busca a solução dos principais problemas de saúde da população, integrando as várias áreas de atenção à saúde de forma coerente com o processo de planejamento da saúde. É através da PPI que o gestor declara quais os procedimentos serão feitos em sua rede própria e quais foram pactuados com outros gestores. Neste caso, os recursos que seriam destinados pela União e Estado para o município encaminhador serão automaticamente desviados na origem para o município que assumiu o compromisso da prestação daquele serviço, independente da prestação do serviço pactuado.

Nota-se que toda a construção do nosso Sistema Único de Saúde (SUS), desde as discussões iniciadas nos anos 1970, que deram origem à criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), em 1976, e à Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), em 1979, até os dias atuais, está fundamentada no debate democrático da sociedade. Todo o desenho desse sistema tem fundamentos lógicos de repartições de competências e de custeios.

Tanto o Promotor de Justiça como o Defensor Público precisam compreender todos esses instrumentos de gestão, suas peculiaridades, implicações e repercussões, para, dessa forma, poder, de forma cirúrgica, buscar as intervenções que não sejam como o “cobertor curto”, que cobre a cabeça, mas descobre os pés; ou seja, atende a uma demanda individual, mas coloca em risco toda a coletividade ao esvair os parcos recursos que deveriam atender às demandas suplicadas pela sociedade nos debates que antecederam a formatação da Política Pública Municipal.

Devem ter em mente que suas contribuições são indiscutivelmente importantes para o aperfeiçoamento do sistema, com a correção de erros, de falhas e a busca pela probidade e eficiência nos gastos da saúde, além de endereçar corretamente suas ações às autoridades legalmente responsáveis pelo serviço ou produto questionado. Além do dever de conhecer em profundidade todas as peças que integram esse conjunto “mecânico” de atendimento à saúde de toda a população, precisam cumprir a determinação legal de participarem efetivamente dos debates com os gestores e a sociedade, nas Conferências de Saúde e junto aos Conselhos Municipais e Estadual de Saúde.

Somente dessa forma, suas intervenções realmente cumprirão os preceitos constitucionais, contribuindo para a consolidação e aperfeiçoamento do Sistema Único de Saúde (SUS).]

http://idisa.org.br/artigos/nt-28