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agosto 2024
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POR: Marcelo Celestino

A Judicialização do Tratamento dos Dependentes Químicos

Marcelo Celestino

O presente artigo tem por finalidade a análise da involução legislativa sobre o tratamento da dependência química no Brasil, produzida pelo advento da chamada Lei Antidrogas que, ao meu ver, está totalmente divorciada da realidade brasileira e certamente não teve a participação do Conselho Federal de Medicina ou da Sociedade Brasileira de Psiquiatria em sua formulação.

Não há margem de dúvida de que os transtornos mentais decorrentes da
dependência química têm repercussões muito graves para a saúde pública em todo o mundo. Suas consequências são extremamente danosas para todos os envolvidos – pacientes, familiares e sociedade. Assim, por ser considerado como uma das formas de doença mental, o seu tratamento precisa ser feito por uma equipe multidisciplinar, onde o psiquiatra
desempenha um papel extremamente importante na construção do projeto terapêutico, documento que definirá as modalidades de abordagens que serão adotadas ao longo do tratamento, bem como as prioridades imediatas para cada caso analisados individualmente.

A política pública para a saúde mental no Brasil começou a ser questionada com o movimento antimanicomial no início dos anos oitentas e adquiriu força com os movimentos da Reforma Sanitária, que teve o seu ápice com a 8ª Conferência Nacional de Saúde, que aconteceu entre 17 e 21 de março de 1986 em Brasília, quando foi aprovada a proposta de criação do Sistema Único de Saúde. O relatório final e as diretrizes dessa conferência foram
encaminhados aos constituintes resultando na previsão da Saúde Pública em um capítulo de nossa Constituição Federal de 1988.

A nossa Carta Magna ao afirmar que a saúde é direito de todos e dever do Estado, nada mais fez do que dar efetividade ao seu princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e do seu objetivo fundamental de assegurar a promoção do bem de todos. Complementando esse direito, reconheceu que as ações e serviços de saúde são de relevância pública e, por isso, impôs ao Poder Público o dever sua regulamentação, fiscalização e controle. Essa vontade constitucional deu amparo para o então Deputado Federal Paulo Delgado apresentar no dia 12/09/89 o Projeto de Lei 3.657/89, propondo a
extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por outros recursos assistenciais e a regulamentação da internação psiquiátrica compulsória. Esse projeto de lei recebeu Emenda Substitutiva do Senado e foi convertido na lei Lei 10.216 em 6 de abril de 2001, passando a dispor sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redirecionou o modelo assistencial em saúde mental no país. Essa lei constituiu um grande
avanço, principalmente por prever a garantia dos mais básicos direitos do portador de doença mental e por produzir mudanças na assistência psiquiátrica, assegurando aos pacientes o acesso aos melhores recursos, diagnósticos e terapias disponíveis; bem como por impor aos Estados a necessidade de editar Políticas Públicas específicas de desospitalização.

Essa nova lei definiu as modalidades de internações psiquiátricas como sendo: voluntária, aquela que se dá com o consentimento do usuário; involuntária, que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e a internação compulsória, que é a determinada pela Justiça. Trouxe também a previsão de que a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrassem insuficientes, exigindo que essa internação somente será poderá ser realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos. Esse diploma legal não limitou o tempo de duração das internações, por outro lado, estabeleceu que o término da internação
involuntária dar-se-á por determinação do médico assistente, assim como na voluntária, mas nesse caso, podendo também ser requerida pelo paciente ou seu responsável.

No dia 07/05/2002 os Senadores Magno Matta e Warderley Martins apresentaram no Senado o Projeto de Lei 115/02, que dispunha sobre o “Sistema Antidrogas, a prevenção e a repressão e o tratamento de usuários de drogas, entre outras questões”. Na exposição de motivos asseverou que em relação “ao tratamento dos usuários de substâncias, dele já cuidava, adequadamente, a legislação anterior, pelo que nesse particular nenhuma alteração de monta se promoveu”. Esse projeto foi convertido na Lei 13.343/2006 (antidrogas), sem também estabelecer limitação ao tempo de internação dos dependentes. No dia 14 de julho de 2010 o Deputado Federal Osmar Terra apresentou na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n.º 7663/2010, com o objetivo promover alterações na lei antidrogas, da mesma forma, não inovou quanto ao prazo da internação involuntária. Durante a sua tramitação, porém, recebeu uma emenda aditiva, que incluiu no meio do seu inciso III do parágrafo 5.º do artigo 23-A, que disciplinava a internação involuntária, o termo “no prazo máximo de 90 (noventa) dias”. Esse Projeto de Lei foi convertido na Lei 13.840/19, trazendo ao mundo jurídico essa limitação temporal da internação involuntária, configurando uma verdadeira e imprudente alteração na legislação anterior, situação incompatível com a realidade dos tratamentos psiquiátricos dos drogatícios, constituindo em um verdadeiro retrocesso, uma vez que o tratamento da dependência de droga não tem tem resultados significativos em apenas noventa dias.

A incoerente e injustificada limitação temporal imposta nas internações
involuntárias pela citada lei 13.840/19, obriga os hospitais a promoverem a desinternação de seus pacientes involuntários ao final desses noventa dias, propiciando-os o retorno à sociedade sem estarem devidamente tratados e, por isso, muitas vezes retomando o convívio das drogas. Para evitar essa situação, os legitimados são obrigado a ingressarem com ação judicial para obter a decisão judicial que autorize a continuidade do tratamento prescrito pelo psiquiatra, agora através da internação compulsória. Nota-se que além de causar sérios transtornos aos pacientes, que geralmente tem o seu tratamento interrompido por não conseguir obter a decisão judicial antes do término prazo legal, também contribui para a sobrecarga do Poder Judiciário brasileiro, já entulhado de ações, geralmente decorrentes de questionamentos sobre leis mal elaboradas e descompromissadas com os reais interesses da sociedade brasileira.

A indicação de internação e alta médica nos serviços de atenção à saúde são
atividades privativas do médico, nos termos do artigo 4.º, inciso XI da Lei Federal 12.842 de 10 de junho de 2013 (Lei do Ato Médico), mas como essa lei é da mesma hierarquia da lei 13.840/2019, temos que essa lei mais nova retirou do médico a autonomia da alta médica nos casos de tratamentos de dependentes químicos, por prever o limite máximo de tempo da internação involuntária. A consequência desse absurdo é que o regime jurídico brasileiro passou a contar com uma nova modalidade de alta médica, a alta legal e obrigatória, independente do estado de saúde do paciente ou do risco que a sua desospitalização poderá lhe acarretar, assim como para sua família ou, até mesmo, para a sociedade.

Entendo que inciso III do parágrafo 5.º do artigo 23-A da lei 13.343/20067, com a redação dada pela Lei 13.840/2019 é inconstitucional por contrariar a Constituição Federal em seu artigo 1.º, III (dignidade da pessoa humana) e artigo 3.º,IV (promover o bem de todos). Está entre os legitimados para a propositura da Ação Direita de Inconstitucionalidade as entidades de classes de âmbito nacional, que precisam demonstrar a pertinência temática. No presente caso, o Conselho Federal de Medicina tem a legitimidade para a propositura dessa ação, por possuir interesse no seu provimento para assegurar o exercício privativo do ato médico para seus representados, sendo que essa defesa configura a indiscutível pertinência temática que a lei e exige.