Judicialização da saúde e seus efeitos desarticuladores
Marcelo Celestino
A Constituição Federal de 1988 assegura que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (Art. 196). Essa obrigação é executada através de “ações e serviços públicos de saúde”, que devem integrar “uma rede regionalizada e hierarquizada” constituindo um Sistema Único de Saúde, organizado através de diretrizes consistentes na “descentralização, com direção única em cada esfera de governo”; que assegure o “atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais”; e tenha a efetiva “participação da comunidade” (art. 198).
a) O Planejamento da Saúde Pública nos Municípios:
O município, cumprindo a determinação constitucional, tem o dever de implantar em seu território a Política Municipal de Saúde através de seu Plano Municipal de Saúde (PMS), que é o principal instrumento que norteia todas as medidas e iniciativas para o cumprimento dos preceitos do SUS. Através das Conferências de Saúde, as demandas municipais de saúde são democraticamente analisadas, buscando informações gerais das condições em que vive a população; os principais indicadores demográficos, epidemiológicos, de morbidade, de estrutura e de acesso.
O PMS é a base para o planejamento de todas as ações de governo na área da saúde, refletindo as necessidades de saúde do município e deve ser a referência para os processos de planejamento e formulação de programações e projetos. A sanitarista Lenir Santos informa que a cada quatro anos devem ser realizadas conferências de saúde para avaliar a situação sanitária e propor as diretrizes para a formulação da política de saúde. Essa avaliação e a fixação de diretrizes se conformam como relevantes instrumentos de planejamento das políticas públicas de saúde, que deve orientar o próprio Plano Plurianual (PPA), que irá estabelecer as diretrizes, objetivos e metas da administração pública para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada pelo prazo de quatro anos.
O Sistema Único de Saúde exige um coerente planejamento da saúde pública, que, para o sanitarista Gilson Carvalho, tem a finalidade de um bom planejamento e identificar o que deve ser feito para que as pessoas não fiquem doentes, não tenham acidentes e não morram precocemente. O resultado do acurado planejamento estratégico situacional da saúde no município é a construção de seu Plano Municipal de Saúde, que é o eixo central de uma gestão voltada para resultados e com participação popular.
Esse planejamento exige a coerência com as ações expressas na Programação Anual de Saúde (PAS), que é fruto dos resultados avaliados no Relatório Anual de Gestão (RAS), sob o controle, participação e aprovação da sociedade através do Conselho Municipal de Saúde, seja em suas análises ordinárias ou na Conferência Municipal de Saúde. O Decreto 7.508/11, em seu artigo 15º, ao tratar do Planejamento da Saúde, recomenda que o processo de planejamento da saúde deverá ser ascendente e integrado, do nível local até o federal, ouvidos os respectivos Conselhos de Saúde, compatibilizando-se as necessidades das políticas de saúde com a disponibilidade de recursos financeiros.
Essa compatibilidade está expressa na citada Programação Anual de Saúde, a qual irá orientar a definição do eixo estratégico da saúde no **Plano Plurianual** (PPA), na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e na Lei Orçamentária Anual (LOA).
Esses Instrumentos de Gestão da Saúde configuram a responsabilidade do município com a saúde de sua população, integrando a sua Política Municipal de Saúde, fruto do processo democrático e social, cujo processo de elaboração cumpre os preceitos contidos na Lei Orgânica da Saúde (8.080/90 e 8.142/90); na Lei Complementar nº 141/2012; e na **Portaria Ministerial nº 2.135/2013. Essa política tem por objetivo garantir o cumprimento do compromisso da gestão para o quadriênio seguinte.
b) Os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas:
Além do planejamento democrático da saúde pública, como forma de garantir o cumprimento dos preceitos constitucionais, a prestação do direito à saúde exige a estrita observância dos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT), que são os documentos que estabelecem critérios para o diagnóstico da doença ou do agravo à saúde; o tratamento preconizado, com os medicamentos e demais produtos apropriados, quando couber; as posologias recomendadas; os mecanismos de controle clínico; e o acompanhamento e a verificação dos resultados terapêuticos, a serem seguidos pelos gestores do SUS.
Devem ser baseados em evidência científica e considerar critérios de eficácia, segurança, efetividade e custo-efetividade das tecnologias recomendadas.
c) A Interferência Judicial na Gestão da Saúde:
O direito à saúde é decorrência do direito fundamental da pessoa humana que lhe assegura a garantia do mínimo existencial. Porém, vários efeitos danosos podem ser apontados com a judicialização da saúde, como:
1. Toda a programação de saúde, democraticamente realizada através dos instrumentos públicos de gestão citados, poderá ficar irremediavelmente comprometida com os bloqueios de recursos determinados nas ações judiciais;
2. A gestão pública não cumprirá o princípio constitucional da eficiência da administração pública, posto que para atender a demanda judicial não tem como adotar o devido processo licitatório;
3. As decisões judiciais desprezam ou não se atêm à existência dos Protocolos e Diretrizes Terapêuticas que regulam os procedimentos de saúde, coativamente impostos para serem realizados em prazos curtíssimos, às vezes até de horas.
Cabe ao magistrado a missão de compatibilizar esse direito ao mínimo existencial com o princípio da reserva do possível. O juiz Federal Saulo José Casali Bahia sacramenta que a coexistência harmônica dos conceitos analisados, aditando à seara da efetivação dos direitos fundamentais tanto o respeito ao seu conteúdo essencial, evitando o esvaziamento, quanto a garantia de uma visão procedimentalista, racional, cujas prestações estatais correlatas estejam lastreadas por uma visão econômica equilibrada.
d) Conclusão:
Nota-se que a saúde pública está centrada em planejamentos muito bem desenhados, cuja lógica se baseia na necessidade da população, na disponibilidade financeira e na correta e eficiente alocação desses recursos públicos, que normalmente são escassos nos pequenos municípios.
Algumas decisões judiciais nas ações que buscam atendimentos de saúde, quando não respeitam a divisão de competência dos entes federados, desarticulam totalmente toda a programação feita a partir dos indicadores epidemiológicos e da efetiva participação popular e contribuem para a ruína dessa grande conquista do povo brasileiro, que é ter à sua disposição um sistema de saúde que é exemplo para o mundo.
i http://idisa.org.br/artigos/nt-28
ii https://www.conasems.org.br/planejar-simplificado-ascendente-e-participativo-por-gilson-carvalho/
iii https://www.indexlaw.org/index.php/garantiasfundamentais/article/view/1623/2093