setembro 2024
/
POR: Marcelo Celestino

Medicamentos para doenças crônicas

Marcelo Celestino

O custeio de medicamentos para o tratamento de doenças crônicas é de responsabilidade dos Estados e da União, não é ponderado o Poder Judiciário impor essa obrigação aos municípios, sob pena de desorganizar toda a sua programação orçamentária para a saúde.

A Constituição da República Federativa do Brasil assegurou como um de seus Princípios Fundamentais a dignidade da pessoa humana. Essa previsão no rol de “cláusula pétrea” impõe que todos os demais comandos decorrentes lhe devam coerência. No entender do jurista Daniel Mitidiero, a “dignidade da pessoa humana e segurança jurídica são dois princípios fundamentais de nossa ordem jurídica”i. Sobre a segurança jurídica, Paulo Mendes nos ensina que “como subprincípio densificador do sobreprincípio do Estado de Direito, a segurança jurídica constitui elemento conformador de uma ordem jurídica que se propõe a respeitar as necessidades mínimas de uma vida socialmente digna” ii. Dessarte, o entendimento da garantia constitucional da saúde como direito de todos e dever do Estado exige o uso do modelo de interpretação constitucional denominado “Eficácia Interpretativa”, que foi muito bem discorrida pelo Ministro Luiz Roberto Barroso, para o qual “a eficácia dos princípios constitucionais, nessa acepção, consiste em orientar a interpretação das regras em geral (constitucionais e infraconstitucionais), para que o intérprete faça a opção, dentre as possíveis exegeses para o caso, por aquela que realiza melhor o efeito pretendido pelo princípio constitucional pertinente” iii. Na mesma linha de exegese, o Ministro Celso de Mello defendeu que “a interpretação da norma programática não pode transformá-la em promessa constitucional inconsequente” iv.

Como foi demonstrado, no entender da melhor doutrina, não é coerente buscar uma interpretação restritiva para garantir o cumprimento do princípio fundamental constitucional da dignidade da pessoa humana, no aspecto de garantir a saúde para todos, exigindo apenas de um ente federado, mormente o mais fraco, sob pena de dar causa a maiores injustiças e inviabilizar o cumprimento de suas obrigações legais. O jurista português, Jorge Reis Novais, defende que “no plano jurídico, uma comunidade que assenta no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana deve, sob pena de inconstitucionalidade, assegurar aquelas oportunidades de realização humana pelo menos, num patamar mínimo, objetivamente determinável no contexto a que se refere, tendo em conta as disponibilidades e recursos existentes, e de acordo com as diferentes possibilidades, limitações e carências de casa pessoa considerada como fim em si mesma” v (sem grifos no original).

O legislador originário, ao elevar o direito à saúde como garantia constitucional, cônscio de sua responsabilidade diante das carências financeiras dos mais de cinco mil municípios brasileiros, teve a preocupação de especificar que a sua efetividade se dará mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (art. 198). Essa determinação impõe o reconhecimento que o direito à saúde não é ilimitado, pois seus contornos foram precisamente fixados. Os tribunais, em sentido contrário ao que foi dogmatizado pela nossa Constituição, têm reconhecido que a responsabilidade pela prestação de serviços e produtos de saúde é solidária, podendo figurar no polo passivo, qualquer um dos entes federados, dessa forma, desprezando a divisão de competências sanitárias desenhada pela Política Pública de Saúde estabelecida pela Lei Orgânica do Sistema Único de Saúde (lei 8080/90).

Na mesma linha de colisão com a Constituição estão os julgados que ao analisar a defesa municipal de sua limitação orçamentária, sentenciam que a escassez de recursos orçamentários não pode constituir empecilho para a efetivação da garantia dos direitos sociais, argumentando que o seu descumprimento constitui violação do fundamento basilar de nossa Constituição, a dignidade da pessoa humana. Ocorre que essa interpretação imponderada por algumas Cortes de Justiça está também desrespeitando o comando constitucional, pois relegam a exigência a obediência às políticas sociais e econômicas. A garantia à saúde foi regulamentada através pela citada Lei Orgânica, que atribui aos municípios a obrigação do custeio dos medicamentos da Assistência Farmacêutica Básica, uma vez que é de sua responsabilidade municipal a atenção primária à saúde. Qualquer outro medicamento que não faça parte da Relação Municipal de Medicamentos (REMUME), somente será de responsabilidade do município, caso estejam textualmente previstos em seu Plano Municipal de Saúde, que é o principal instrumento de gestão, pelo qual são reconhecidas as necessidades e vulnerabilidades locais. Esse Plano é criado com a participação da sociedade na Conferência Municipal de Saúde e com fundamento em estudos epidemiológicos e alinhado ao Plano Plurianual, à Lei de Diretrizes Orçamentárias e à Lei Orçamentária Anual, para a garantia de repasse dos recursos financeiros para a prestação de serviços à população. Os demais medicamentos de atenção especializada são de responsabilidade dos Estados e da União.

O Supremo Tribunal Federal está corrigindo os desvios na imputação da responsabilidade para a oferta de medicamentos impostos pelos juízos e tribunais inferiores, pacificando o entendimento de que, não obstante a solidariedade entre os entes federados, o dever de prestar assistência à saúde está condicionado à observância dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, como ficou patente no julgamento pelo Supremo Tribunal Federal no RE 855178, que fixou a tese de repercussão geral n.º 793, com a seguinte redação: “Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro”.

Da mesma forma, no julgamento da Suspensão de Segurança n.º 5.431, o relator Ministro Luiz Fux reconheceu o dever das autoridades judiciais direcionarem o cumprimento das decisões para fornecimento de prestações de saúde aos entes competentes de acordo com as regras de organização do Sistema Único de Saúde. Na oportunidade, Fux argumentou que “o imediato cumprimento da decisão impugnada representa grave risco à manutenção do equilíbrio das contas municipais”, por isso concedeu a medida de contracautela, deferindo o pedido de medida liminar para sustar os efeitos da decisão proferida nos autos originais, com fundamento no § 7º do art. 4º da Lei 8.437/92, mantendo a eficácia apenas em relação ao Estado, nos termos do § 2º do art. 4º da Lei 8.437/92 vi.

A Suprema Corte ditou que a garantia jurídica dos direitos sociais depende muito mais do que prestações positivas do Poder Público, mas principalmente do respeito à efetiva, correta e responsável aplicação dos recursos do Estado. Nesse sentido, primou pelo respeito do sistema legal de divisão de competências sanitárias e, principalmente, o efetivo cumprimento da POLÍTICA NACIONAL DE MEDICAMENTOS (Portaria n.º 3.916, de 30 de outubro de 1998) que define a responsabilidade municipal em: a) coordenar e monitorar o componente municipal de sistemas nacionais básicos para a Política de Medicamentos; b) assegurar o suprimento dos medicamentos destinados à atenção básica à saúde de sua população, integrando sua programação à do estado, visando garantir o abastecimento de forma permanente e oportuna; c) adquirir, além dos produtos destinados à atenção básica, outros medicamentos essenciais que estejam definidos no Plano Municipal de Saúde como responsabilidade concorrente do município.

O Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011, que regulamenta a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, dispõe que a RELAÇÃO NACIONAL DE MEDICAMENTOS (RENAME) “compreende a seleção e a padronização de medicamentos indicados para atendimento de doenças ou de agravos no âmbito do SUS”. Em seu Anexo I é definida a Relação Nacional de Medicamentos do Componente Básico da Assistência Farmacêutica (CBAF) que é constituído por uma relação de medicamentos (Anexo I) e uma de insumos farmacêuticos (Anexo IV) voltados aos principais problemas de saúde e programas da Atenção Primária. O financiamento desse componente é responsabilidade dos três entes federados, sendo o repasse financeiro regulamentado pelo Artigo nº 537 da Portaria de Consolidação GM/MS nº 6, de 28 de setembro de 2017.

Já em seu Anexo III é definida a Relação Nacional de Medicamentos do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF) é uma das estratégias de acesso aos medicamentos no âmbito do SUS que busca garantir a integralidade do tratamento medicamentoso, em nível ambulatorial, para algumas situações clínicas, principalmente, AGRAVOS CRÔNICOS, com custos de tratamento mais elevados ou de maior complexidade. O financiamento desse CEAF não é de responsabilidade dos municípios. Somente a título de ilustração, os municípios goianos dispõem de aproximadamente R$1,20 (um real e vinte centavos) para o atendimento farmacêutico por habitante, isso com os aportes tanto do município, como do Estado e da União.

Não é justo o Poder Judiciário obrigar o município ao pagamento de medicamentos para doenças crônicas e de elevados custos, deixando de lado todo o arranjo legal de responsabilidades sanitárias, sob o argumento da solidariedade entre os entes e na garantia do cumprimento do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Essas decisões causam sérios desajustes nas programações orçamentárias municipais e imensuráveis prejuízos para toda a população. O jurista português, Jorge Reis Novais, defende que “um Estado de Direito fundado na dignidade da pessoa humana, para além de obrigado a garantir a todas as pessoas as condições mínimas de bem-estar e de desenvolvimento da personalidade e possibilidade de exercício efetivo dos direitos fundamentais, observa necessariamente o princípio da igualdade, na medida em que está juridicamente vinculado a tratar todas as pessoas com igual consideração e respeito: sem o fazer, não estaria a reconhecer a cada uma dignidade de que decorre do simples fato de ser pessoa” vii.

O endereçamento da ação somente o município como o responsável solidário e ilimitado contraria os entendimentos do Supremo Tribunal Federal e todos os princípios do SUS, causando enriquecimento indevido aos Estados, que apesar de deterem a responsabilidade por essas categorias de medicamentos, são isentos desse custeio mesmo recebendo repasses do Governo Federal. Deve ser considerado também, que a população tem o direito ao cumprimento de seu Plano Municipal de Saúde, instrumento de gestão elaborado com sua efetiva participação.


Mitidiero, Daniel – Cortes superiores e cortes supremas: do controle à interpretação da jurisprudência ao precedente. Revista dos Tribunais, 3.ª ed. pág. 23.
ii Oliveira, Paulo Mendes de – Coisa Julgada e precedente: limites temporais e asd relações jurídicas de trato
continuado. São Pulao, Revista dos Tribunaius, 2015 pág 23.
iii BARROSO, Luiz Roberto. O COMEÇO DA HISTÓRIA. A NOVA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL E O PAPEL DOS PRINCÍPIOS NO DIREITO BRASILEIRO, R. Dir. Adm., Rio de Janeiro, 232: 141-176, Abr./Jun. 2003
iv https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=335538
v NOVAIS, Jorge Reis. Princípios estruturantes do estado de direito, Almedina janeiro , 2019, pág 58
vi https://www.jusbrasil.com.br/processos/86364809/processo-n-5431-do-supremo-tribunal-federal
vii NOVAIS, Jorge Reis. Ob cit. pág.27