setembro 2024
/
POR: Marcelo Celestino

Prestação de contas dos gastos de saúde na pandemia

Marcelo Celestino

O cenário de gastos elevados no combate a pandemia do Corona vírus está mudando a forma de fiscalização pelos órgãos competentes, com a conjugação de esforços e compartilhamento de informações, o que exige de todos os gestores da saúde pública a atenção redobrada quanto a correta e transparente aplicação desses recursos, assim como a precisa e responsável execução dos programas financiados.

A Constituição Federal de 1988 adotou o modelo de Estado Democrático Social de Direito, que tem como principais características o império da lei; a garantia dos direitos fundamentais e o controle social dos atos públicos. O anunciado que reverbera essa escolha está em seu artigo 37, que obriga todos os entes federados ao cumprimento dos princípios da “legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. O objetivo dessa ordem é manter os agentes públicos nos trilhos do inafastável interesse público e para salvaguardar o atingimento dessa vontade, obrigou os agentes públicos a realizarem periodicamente prestações de contas de todos os seus atos, com maior ênfase para os gastos públicos.

Esse dever de dar conhecimento dos atos é o que Frederich Mosher denominou de Accountability i, termo que a Doutora Anna Maria Campos traduziu como os limites dos mecanismos de controle formal gerados no interior da burocracia” ii. A exigida prestação de contas, o que para Marçal Justen “é um instrumento de participação democrática na formação da vontade estatal”,iii deve ser ampla e transparente, pois é o procedimento pelo qual a sociedade exerce os controles sociais sobre a administrações públicas, diretas, indiretas ou fundacionais.

Para regular as finanças públicas e a fiscalização financeira da administração pública direta e indireta, a Constituição Federal exigiu a edição de Lei Complementar, a qual foi sancionada com o número 101, de 4 de maio de 2000, nominada de “Lei de Responsabilidade Fiscal”, a qual possui um capítulo destinado especificamente para a “Transparência, Controle e Fiscalização”. Ao longo de seus vinte e um anos de existência, a LRF sofreu várias alterações, com relevo para a Lei Complementar 131, de 27 de maio de 2009, a Lei da Transparência, que fez incluir em seu texto o “incentivo à participação popular e realização de audiências públicas, durante os processos de elaboração e discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos” (Art. 48, §’1.º, I) e a disponibilização “a qualquer pessoa física ou jurídica o acesso a informações referentes, quanto à despesa, todos os atos praticados pelas unidades gestoras no decorrer da execução da despesa, no momento de sua realização, com a disponibilização mínima dos dados referentes ao número do correspondente processo, ao bem fornecido ou ao serviço prestado, à pessoa física ou jurídica beneficiária do pagamento e, quando for o caso, ao procedimento licitatório realizado”; e quanto a receita, “o lançamento e o recebimento de toda a receita das unidades gestoras, inclusive referente a recursos extraordinários” (Art. 48-A, I e II).

A gestão fiscal responsável “pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições” (LRF, Art. 1.º, § 1.º). Nota-se que os fundamentos da Lei de Responsabilidade Fiscal estão no planejamento, na transparência e no
controle social, através da participação popular. O artigo 70, parágrafo único da CF/88, com redação dada pela Emenda Constitucional n.º 19/98 trata da obrigatoriedade de prestar contas por “qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiro, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária. O descumprimento desse dever de prestação de contas, importará ao infrator a imposição de multas, responsabilização pela prática de atos de improbidade administrativa.

Apesar da Constituição Federal assegurar que “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade”, o texto constitucional, porém, ressalva a não divulgação das informações “cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado” (artigo 5º, inciso XXXIII). Além
de que “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem” (Inciso LX). Esse sigilo, porém, não pode ser decretado de forma arbitrária, em razão de seu caráter de excepcionalidade exige que seja devida e satisfatoriamente justificado aos motivos que assim o motiva, por expressa determinação o artigo 21 da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, Lei nº13.655, de 2018iv

A Organização Mundial da Saúde (OMS) no dia 11 de março de 2020, elevou o estado da contaminação à pandemia de Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2)v exigindo das autoridades sanitárias nacionais e locais a edição de orientações, como a necessidade de distanciamento social, o uso de máscaras, higienização correta das mãos, dentre outras. Para o enfrentamento dessa brutal pandemia, o Governo Federal editou a Lei Complementar 173/2020, implantando o programa de suporte a Estados e Municípios por perdas de arrecadação e recursos, que prevê em seu artigo 2.º que “de 1º de março a 31 de dezembro de 2020, a União ficará impedida de executar as garantias das dívidas decorrentes dos contratos de refinanciamento de dívidas celebrados com os Estados e com o Distrito Federal com base na Lei nº 9.496, de 11 de setembro de 1997, e dos contratos de abertura de crédito firmados com os Estados ao amparo da Medida Provisória nº 2.192-70, de 24 de agosto de 2001, as garantias das dívidas decorrentes dos contratos de refinanciamento celebrados com os Municípios com base na Medida Provisória nº 2.185-35, de 24 de agosto de 2001, e o parcelamento dos débitos previdenciários de que trata a Lei nº 13.485, de 2 de outubro de 2017”.

Em seu § 1º, determina que no “caso, no período, o Estado, o Distrito Federal ou o Município suspenda o pagamento das dívidas de que trata o caput, os valores não pagos” deverão “ser aplicados preferencialmente em ações de enfrentamento da calamidade pública decorrente da pandemia da Covid-19”. No seu parágrafo quinto, determinou que os “Estados, o Distrito Federal e os Municípios, deverão demonstrar e dar publicidade à aplicação dos recursos de que trata o inciso II do § 1º deste artigo, evidenciando a correlação entre as ações desenvolvidas e os recursos não pagos à União, sem prejuízo da supervisão dos órgãos de controle competentes”.

Para a exigida prestação de contas dos gastos com o combate do Coronavírus, além da obrigatoriedade que compete aos municípios de informar periodicamente aos Tribunais de Contas todas as ações adotadas e aos seus efeitos reflexos, indicando as despesas e respectivas fontes de custeio, devem, também, comprovar a aprovação pela Assembleia Legislativa do Estado, de seus Decretos de Calamidade Pública. A decisão proferida na Medida Cautelar pelo Ministro Alexandre de Moraes do Supremo Tribunal Federal, que afastou a exigência de demonstração de adequação e compensação orçamentárias, prevista na Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000)vi, se aplica exclusivamente, para a criação ou expansão de programas públicos destinados ao enfrentamento da crise gerada pela COVID-19, e incidem somente durante a vigência do decreto de calamidade de cada ente federativo, podendo se estender, no máximo, até 31 de dezembro de 2020.

Essas flexibilizações legais motivadas pela situação de emergência, exigem a adoção rigorosa do princípio da transparência, da mesma forma que a concessão de qualquer benefício pelo poder público (auxílio financeiro aos mais necessitados, ou isenção fiscal a pessoas jurídicas em dificuldades, etc.) o inflexível acautelamento dos já citados princípios norteadores da administração pública.

A Covid-19 gerou e continua gerando medo pelo seu potencial de contaminação e mutações, com novas variantes que a todo momento são identificadas. O medo provocado pela Covid-19 não é apenas no âmbito sanitário, mas também para a segurança jurídica, posto que o aumento mundial da demanda por insumos e serviços de saúde, num cenário de limitação da capacidade de atendimento das estruturas públicas e privadas de saúde, continuam levando as autoridades sanitárias a decidirem por compras pelo preço que encontram e a utilizarem de procedimentos que poderão, no futuro, ser questionados pelos tribunais de contas e outras instituições de controle.

Por tudo isso, a grande preocupação dos bons e maus gestores públicos na atualidade é a correta prestação de contas desses gastos emergenciais para o combate à Covid-19. Esse temor procede, pois são nesses cenários que a corrupção prolifera em níveis do próprio vírus da Covid-19, o que está colocando em situação de alerta todas as instituições de controle. Para o articulista Ahmed Sameer El Khatib, responsável pelo capítulo “Pandemia Fiscal: Uma análise entre corrupção pública, evasão fiscal e Covid-19“, da “Revista Tribunais de Contas, a Pandemia e o Futuro do Controle“ do Instituto Rui Barbosa do Brasil, as “crises humanitárias e econômicas criam a tempestade perfeita para que a corrupção prospere, devido ao enorme influxo de ajuda financeira e à necessidade de aquisição emergencial e desembolso de fundos para mitigar a crise – com supervisão mínima. Provas de crises anteriores, bem como a atual pandemia de COVID-19 indicaram que a corrupção reduz a quantidade e a qualidade da ajuda ou pacotes de estímulo que chegam aos beneficiários visados, o que pode prolongar a crise e afetar o crescimento”.

Nesse desiderato acautelatório dos interesses públicos, a Controladoria-Geral da União (CGU) está monitorando a aplicação dos recursos federais repassados a estados e municípios para combater a COVID-19. Esse monitoramento tem o objetivo de identificar possíveis irregularidades, sendo que, segundo informações colhidas no site da CGU, “desde abril de 2020, já realizou 76 operações especiais, em conjunto com a Polícia Federal (PF), Ministérios Públicos e outros órgãos parceiros. O montante analisado nas contratações e licitações é de R$ 4,1 bilhões. O prejuízo efetivo (que constou nas apurações) é de R$ 56,4 milhões e o prejuízo potencial (que decorre dos desdobramentos das investigações) é de R$ 140,5 milhões”.

Esse cenário de gastos elevados no combate à pandemia do coronavírus está mudando a forma de fiscalização pelos órgãos competentes, com a conjugação de esforços e compartilhamento de informações, o que exige de todos os gestores da saúde pública a atenção redobrada quanto à correta e transparente aplicação desses recursos, assim como a precisa e responsável execução dos programas financiados. As prestações de contas deverão ser bem detalhadas, com justificativas plausíveis dos gastos que não obedeceram aos processos licitatórios. Por tudo isso, o acompanhamento jurídico especializado, mormente em Direito Sanitário, é de suma importância para o assessoramento correto, com o objetivo de evitar que caiam na “malha fina” da Controladoria-Geral da União, Tribunais de Contas, Ministérios Públicos e Polícias Federal e Civil.